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CRISTINÓPOLIS MT

CRISTINÓPOLIS MT

12
Fev18

6ª Narrativa

EU MESMO Quero Ler

O fugitivo

Um simples vira lata provoca uma enorme confusão

Certo dia um cachorrinho vira lata, que atendia pelo nome de biscoito desperta uma grande multidão com seus latidos intermináveis. Piloto, o cachorro do João Lázaro também já havia dado uns dois latidos. Era o cagüete de um episodio sensacional e muito emocionante que estava apenas começando. Nessa narrativa recordamos essas famílias: a família do Oliveira, a família do Manoel Bispo, a família do Melquíades e a família do Pedro Torres bem como os demais integrantes destas famílias que aqui não chegam a ser mencionados nominalmente. Todos com os olhares voltados para o rumo em que o cachorrinho denunciava com seus latidos apreensivos. Quando não, a cabrita leiteira que pascia mais adiante a uns trinta metros próximos a um murundum de cupins, assustada deu um salto para frente e saiu correndo meio ressabiada olhando para trás como quem tivesse visto uma fera. Lá mais longe um pouco se viu uma moita de capim colonião agitando-se como que tivesse dali estourado uma boiada. Alguém gritou: é um lobisomem! Outros replicavam; mas não há lobisomens durante o dia. E o espectro partiu rumo ao desconhecido rasgando a quiçaça. Foi um espetáculo muito divertido, uns de enxada na mão, outros com foice ou facão eu até achei que poderia ser um terrorista qualquer. E a cachorrada avançava unânime rumo ao alvo até então indefinido. Um fato curioso é que até animais e aves, répteis e até insetos manifestavam seu desejo de verem se livres de famigerado monstro. E a perseguição continuou até onde deu, pois, mais além havia um precipício daqueles de inspirar romances e quem ali caía nunca mais voltava. Asdrúbal montado a cavalo acompanhava mais de perto e mais atrás vinha à multidão em tamanho alvoroço. Era gente gritando, cachorro latindo, gado berrando parecia o fim do mundo. Em um dado momento Asdrúbal freou o cavalo olhou para trás e gritou à multidão: parem aí, não é um bicho não! Agora eu vi direito é um homem, parece que ele está doido ele vai pular no abismo. Mas foi aí que a multidão ficou mais curiosa. Em poucos minutos o local estava tomado daquela gente faminta por novidades e o quê os mais ajuizados temiam foi fatal. Dona Díula Diele que não podia correr devido aos seus cento e dez quilos de peso consolava se com os vestígios que ficavam para trás, achou e trazia nas mãos farrapos de uma camisa de listras vermelhas e brancas.

A multidão se desfaz. Os dois cachorros prosseguem na perseguição.

Passado o momento crucial em que o desconhecido homem desaparece em meio às rochas naquele terreno íngreme, momento este em que a multidão vive o ápice de uma aventura como se estivesse simulando uma epopéia ou ensaiando um drama para algum trabalho científico; assim num dado momento em questão de alguns segundos tudo pára como se nada estivesse acontecendo. Nenhum mugido de vacas, nenhum latido de cachorro algum, nenhum pássaro gorjeia, somente se via a poeira baixando. E então no segundo seguinte, depois de respirar fundo e tomar alento todos criam novo ânimo. Alguns deles voltam arrazoando-se entre si como se tivessem sentindo-se realizados. Nessa hora alguém começa contar casos semelhantes vividos anteriormente. A maioria deles volta para casa, atitude esta que não é a de todos e muito menos dos dois cachorros que há essas horas já haviam se embrenhado no mato como quem ainda não tivesse desistido da empreitada. Biscoito dá um latido lá num recanto entre as penhas escarpadas daquele despenhadeiro arredio que só de lembrar a gente já sente tonteira. Isso foi o sinal de alerta para o reinício da perseguição que para uns era compromisso de solidariedade, mas para outros era só um divertimento. Seo João Lázaro, que também era conhecido por Lazinho barbeiro (seo lazim) para os mais íntimos, era um dos persistentes já que piloto, seu admirável mestiço, era companheiro de biscoito nas caçadas. Esse respondia aos latidos de alerta de biscoito apenas com rosnados mais ou menos baixos, mas que dava para ouvi-los acerta distância. Repartidos no cuidado a despeito dos animais que se dispersaram e no que estava para frente a ser conquistado seguimos um pouco adiante e logo achamos uma trilha por onde passaram os dois cachorros. Num determinado lugar em cima de um lajedo paramos um pouco de tempo para dar uma bispada em volta. Foi aí que contemplamos ao mesmo tempo a beleza daquela cordilheira de montanhas azuladas e ao mesmo tempo enfeitadas de flores de ipê de todas as cores, e o verde das ramagens das árvores e arbustos, e as palmeiras agigantadas e o desprezo em que estávamos submetidos naquele lugar deserto. Mas só de pensar que ali naquele exato lugar naquelas mesmas condições e talvez um pouco pior estivesse um ser humano tão desprotegido que nem identidade tinha, pois, ainda não havíamos contemplado o seu rosto nem ao menos visto de perto. Quem olhava para direita via aquele paredão de rochas vulcânicas transmutadas com o tempo. Quem olhava para baixo enxergava lá bem longe o prado reverdejante daquelas fazendas de gado que de tão distante mais parecia um sonho de fantasias. Daí avistamos uma lagoa que se formava no encontro de dois rios que deslizavam ao pé da serra. Fomos despertados por um barulho na água e então vimos biscoito e piloto nadando em direção a uma cabana de folhas de coqueiro construída logo no início do vale. Asdrúbal resgata os animais. É feriado no arraial. Enquanto isso no arraial o alvoroço é grande, o povo continua apreensivo querendo saber o fim daquele episódio, o quê realmente aconteceu com desafortunado homem?E os caçadores como se passam, e onde estão?! À que horas hão de voltar, quem vai trazer a notícia derradeira? É feriado no arraial, mas para Asdrúbal a luta continua. Por ser o mais experiente coube-lhe a tarefa de ajuntar o gado, missão essa que lhe tornou um pouco mais difícil, pois conta somente com a ajuda do cavalo já que os dois cachorros estão ocupados em serviço de maior necessidade. Asdrúbal monta a cavalo e sai rumo às palhadas. É setembro, mês em que se preparam os terrenos para o plantio. As roças estão em parte destocadas, mas boa parte delas ainda está coberta de matos, a macega está bem alta. Ouve-se um berro de cabrito. O rebanho de cabras espalha-se na quiçaça, o cabritinho continua berrando desesperado. Asdrúbal espora o seu cavalo bicharedo. Bicharedo foi domado para os serviços do sítio, por isso tinha facilidades em atender as ordens dadas. Qual o espanto de nossos heróis um lobo ravace havia atacado o rebanho e arrebatara uma cabritinha. Para bicharedo um estalo de chicote era ordem de avançar; bicharedo não temia feras. O lobo não teve alternativa senão a de desistir da empreitada e não foi desta vez que uma nédia cabritinha foi devorada. Um temporal começa levantar-se no horizonte e antes de começar chover o rebanho de cabras já estava todo de volta nas acomodações do sítio, e ao toque do berrante as vacas logo se ajuntaram no curral. Dona Díula Diele comunica-se com os caçadores por celular e as novas são passadas e vice-e-versa. As emoções são vividas lá e cá num tom de solicitude misturada com esperanças de um final feliz. Lá no local onde estávamos até parece que a tormenta chegou primeiro. O vento soprava forte, as taquaras assobiavam, as moitas de capim dobravam-se até ao chão. Relâmpagos e trovões soavam alternadamente num drama interminável. A rocha onde estávamos tinha uma altura como a de um prédio de sessenta andares. Se estava seguro quem estava ali protegidos entre as penhas nosso cuidado era mesmo com aquele desolado fugitivo que estava no mundo da lua sem endereço nem esperança. O duelo com a águia gigante. A volta dos dois cachorros. A chuva passa e as esperanças se renovam e tudo fica mais divertido naquela tarde ensolarada apesar de estarmos numa missão perigosa. Só que ali não poderíamos ficar para sempre, teríamos que tomar uma atitude, alguma coisa tinha que ser feita. E, por falar em fazer algo surgiu mais uma necessidade e tinha que ser feita de pressa; estávamos ameaçados de infortúnio. Uma águia gigante investe furiosa contra nós. Aquela imensa ave de rapina de envergadura incalculável parecia estar mesmo decidida devorar-nos. Só que ela não sabia que estava desafiando um trio de homens valentes. E o duelo começou era mais ou menos quatro horas da tarde. Seo Lazim contra-atacava-a com sua tesoura bem afiada. Se ela fugia das lâminas envenenadas da tesoura levava simultaneamente dois golpes de facão. Quando perdia um de seus membros esse se recompunha imediatamente. Para ganhar tempo ela lançava sobre nós uma espécie de piolhos que produzia uma picada semelhante às de formiga cabeçuda, aquela que os cuiabanos chamam de carregador. O celular toca, mas não temos tempo de atender. Para aliviar as picadas dos insetos a gente tomava um gole de guaraná de ralar que por providência do seo Lazim nós tínhamos uma garrafa dele ali prontinho à nossa disposição. Era sabido que para vencê-la seria necessário decepar os quatro membros e a cabeça de uma só vez, o que era impossíveis para nós três. O sol se põe e a peleja continua interminável em cima daquela penha descalvada sob o clarão amigável da lua cheia. Foi então que Plínio lembrou que trazia em seus bolsos um apito de imitar aves silvestres que biscoito conhecia muito bem. Mas, chamar biscoito era o mesmo que chamar piloto também, pois, os dois cachorros eram amigos inseparáveis. E foi o que veio acontecer. Em menos de dez minutos fomos reforçados com a ajuda dos dois heróis que atacavam veementemente o enfadonho inimigo. Agora o fabuloso animal, digo, ave se vê diante de um quinteto que luta com a certeza de vencer. Só restava-nos saber se os cachorros também sabiam qual seria a nossa única chance de aniquilar aquele famigerado monstro. E assim homens e animais ignorando as picadas dos piolhos persistem na luta até que num dado momento numa perfeita sincronia é decepado seus cinco órgãos e aquele corpanzil cai sem vida sobre a rocha a nossos pés. Entretanto esta vitória não nos deixa de todo despreocupados em vista de que nosso objetivo era mesmo salvar uma pessoa e, além disso, tem o povo lá no arraial ansioso à nossa espera. Depois de festejar um pouco nossos guias piloto e biscoito nos leva de volta à entrada daquele cenário e reconhecendo o caminho em poucos minutos estávamos a salvo em casa com nossos familiares que nos aguardava em vigília até a nossa chegada

. A busca continua no segundo dia com Asdrúbal e os cachorros. A luta com a sucuri. Acha-se o fugitivo. A entrevista com Díula Diele

. No dia seguinte o suspense continua no arraial, ninguém concorda em dar o caso por encerrado. Por ser o mais experiente Asdrúbal é indicado por unanimidade a continuar procurando o infeliz desconhecido. Asdrúbal segue a pé, mas leva consigo os dois parceiros de caçada biscoito e piloto, uma farta matula além de uma pastinha de primeiros socorros e um facão afiado. Desta vez nosso amigo não segue o mesmo caminho por ser de difícil acesso além de já estar explorado sem lograr bons resultados. Asdrúbal desce a serra pelas encostas das montanhas margeando sempre que possível uma corrente de água que nasce acerta altura quase no topo da serra. Escorrega aqui, cai ali, levanta acolá por fim chega num vale ao nível do mar. Por ser amante das frutas tropicais Asdrúbal entra até a certa distância no mato a fim de apanhar algumas frutas de marmelo. Mas, se marmelo é uma boa fruta para se comer não era só Asdrúbal que estava ali em busca de cobiçada fruta. Já tinha alguém que chegou ali primeiro e esse alguém era nada mais nada menos do que uma feia cobra sucuri agigantada e faminta. Sem perder tempo ela dá um bote certeiro laçando nosso herói pelos lombos deixando braços e pernas imobilizados. Num instante ela passa sua presa para a ponta do rabo e começa a sôfrega caminhada em direção ao rio. Biscoito entra em ação, mas tudo o que pode fazer é latir sem coragem de chegar muito perto. Valendo-se de alguns troncos de arvores que cruzava pela via crucis Asdrúbal apenas consegue retardar a chegada ao macabro destino. E a cobra conseguiu o seu intento chegando até a margem do rio ignorando as ameaças de biscoito. Nesta hora Asdrúbal já podia dar seus últimos brados em pedido de socorro, mas um sábio não perderia a chance de tirar proveito do silêncio. E então nesse momento chega um mendigo ancião que peregrinava pelos matos à beira do rio. Incomodado com os latidos do cachorro resolveu então vir ver o quê se passava, o quê estava acontecendo. E com a ajuda de uma faquinha de mesa ele libertou o nosso herói. Grato pelo favor recebido Asdrúbal convida o peregrino a passar uma semana no arraial e oferece-lhe assistência. Lá ele se banha faz cabelo e barba, ganha alimentação e algum medicamento enquanto se recupera do susto, pois era ele o miserável que procurávamos. Para entrevistá-lo não poderia haver ninguém melhor do que a jornalista Díula Diele que aqui é identificada pelas iniciais DD. Sentado na cadeira de barbeiro ele responde às perguntas traiçoeiras de Diele. O senhor mora aqui há quanto tempo? O hóspede responde: desde que o povo daqui era totalmente outro. Mas esta resposta não encaixou bem no nosso entendimento, pois o arraial dos cabritos já existia desde os tempos de nossos tataravôs e não mudou quase nada até aos dias de hoje. DD como é o seu nome? O hóspede responde: meu nome é Saud Ad Edum Thainpoc Iace Phoe. (que traduzido quer dizer: saudade de um tempo que já se foi.) DD, mas esse nome parece meio árabe meio asiático?! O hóspede responde: meus ancestrais vieram do oriente. DD o senhor sempre morou no sítio? O hóspede responde: às vezes sim, às vezes não. Cheguei a ser comerciante de secos e molhados, mas depois parei porque não deu mais, o mundo se transforma muito de pressa. DD e como eram as coisas por aqui antigamente? O hóspede responde: tinha muita gente nativa, tinha muita caça também. Alguns povos tocavam lavouras, criavam gado, construíam cidades, outros viviam de caça e pesca. Até que um dia chegaram treze barcos maiores do que os nossos e deles desceram mil e quinhentos homens armados cujas armas cuspiam fogo e foram fazendo cadáveres aos montões. Eram homens muito brancos e altos, um deles usava uma roupa comprida até aos pés que dirigiu um ritual aos deuses. Diziam-se donos das nossas terras. Apelidaram-nos de índios. Começaram a cortar as nossas árvores e levavam-nas em seus barcos. Mas isso não continuou por muito tempo, desde que essa gente chegou aqui, as coisas não param de mudar. Depois de muito tempo começou aparecer muita gente negra também. E dos nativos os que não morriam matados por eles ou das doenças que eles traziam com eles fugiam para os lugares mais distantes do mar para se salvarem. Apesar disso certo tempo depois eles também começaram a subir até as nascentes dos rios a procura de nossas pedras preciosas. Sempre ganhando as guerras eles foram aumentando e os nativos diminuindo. Quando a gente pensa que aprendeu com eles vem outra geração mais astuta e muda tudo outra vez. DD o senhor tem alguma filosofia? O hóspede responde: sim, posso contá-la em versos:

I

Chegaram os gringos Gritando alto e falando palavrão,

Chutaram a porta da venda Arrebentaram o balcão,

Jogaram a balança filizola no chão,

E saíram em algazarra Levando um punhado de papel na mão.

II

Chegou tarde demais Quem veio para matar o bicho...

E até a caixa registradora Eles jogaram no lixo.

Derrubaram as prateleiras Acabou-se o bolicho

E do mercado de ações Eles fizeram o seu nicho.

III

Longe vai o tempo de nossos carros de bois, Nossas charretes, carroças ou carroções. E os cavalos de cela que para conduzi-los Não precisava botões. Hoje estão esquecidos rotos empoeirados Dando lugar aos possantes carrões.

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